sexta-feira, agosto 13, 2010

Saramago - A obra e o homem

Passo a transcrever um texto que me foi enviado pela autora e que é um belo ensaio sobre a obra de José Saramago.

Para ler com atenção.


Deixo também um link mais abaixo para um texto de Carlos Pinto Coelho desta vez sobre o Homem José Saramago e que espelha, na minha opinião, o pior defeito de Saramago: a sua incoerência.

Mas o que conta é a obra que deixou. O resto são minudências.

Coimbra, 19 de junho de 2010

Último regresso à Pátria exilada: adeus a José Saramago

Por Rosângela Divina Santos Moraes da Silva*

(*) Doutoranda em Línguas e Literaturas Modernas, pela Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra-Portugal; bolseira investigadora pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia portuguesa), Centro de Literatura Portuguesa/FLUC; integrante do grupo de pesquisadores de Crítica Textual/UERJ-RJ (CAPES e CNPQ); graduada e pós-graduada em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás/UFG-GO (bacharelado e licenciatura em Letras Vernáculas, especialização em Leitura e Produção de textos, mestrado em Literatura), pós-graduada em Docência Universitária pela Universidade Salgado de Oliveira/ UNIVERSO-GO; ex-professora de Língua portuguesa aplicada aos cursos de graduação e pós-graduação da UNIVERSO (dentre eles: Letras, Direito, Pedagogia e Docência Universitária), PUC-antiga Universidade Católica de Goiás/UCG-GO(graduação em Direito, Filosofia, Psicologia e outros), Universidade Estadual de Goiás/UEG-GO (graduação em Letras), UNIFAN- atualmente, Faculdade Alfredo Nasser (graduação em Farmácia, Enfermagem, Fisoterapia e Educação Física) e de Literatura brasileira e portuguesa no Colégio Visão, bem como ministrou aulas dessas disciplinas em outros colégios de ensino fundamental e médio, tanto no âmbito privado quanto público, em Goiânia, Estado de Goiás- Brasil.

“Não se trata de instruir, senão educar.”

José Saramago (Democracia e Universidade)

Tal qual o homem do barco, José Saramago, logo de manhã, segue em sua última viagem, rumo ao cais em busca da ilha desconhecida, no dia 18 de junho próximo passado. Sua mulher da limpeza, María Pilar Del Río Sánchez acompanhou-o, apoiando-o desde o exílio voluntário em Espanha ao último regresso à Lisboa, na tarde de sábado, dia 19, ao velar o translado do féretro com os seus despojos em um avião da Força Área Portuguesa, o FC-295. A Pátria que o hostilizou, agora o reconduz à terra, na qual nascera, na pessoa da Ministra da Cultura Gabriela Canavilhas e o recebe, na figura de várias autoridades políticas, intelectuais, com Honraria Militar, no aeroporto de Figo Maduro e, depois, em escolta de batedores da Polícia pelas ruas da Capital portuguesa.

A incompreensão hostil, sobretudo, de seu livro Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) que não fora aceito pelo governo português a concorrer um Prêmio Europeu e que suscitou severas críticas do Vaticano por entender seu texto como ofensa deliberada aos católicos, além de sua postura cética frente à Igreja, política, literária e ideológica, levou Saramago a buscar uma nova Pátria acolhedora. O povo espanhol sente a sua perda como o português, o brasileiro e muitos outros. A cerimônia solene em sua homenagem (1) realizada no salão nobre, dos Paços do Concelho, na Câmara Municipal de Lisboa é a última acolhida, um reconhecimento, mais que merecido, do qual a sociedade e governo português eram-lhe devedores, por tudo que ele alcançou, elevando a Cultura, a Literatura, a Língua portuguesas a nível universal, mas há que se ter também em consideração o seu valor humano e ideológico extraordinários, de insubmissão, de uma frontalidade incomparável, de intervenção pública, política e não só literária.

Nascido a 16 de novembro de 1922 , na província de Ribatejo, aldeia de Azinhaga, Saramago (sobrenome que lhe foi dado por um tabelião quando de seu registro, datado oficialmente no dia 18), aos 87 anos, sucumbe a complicações respiratórias e à falência múltipla dos órgãos em decorrência de uma leucemia crônica. O ícone autodidata, irreverente e polêmico Saramago, nome, também, de uma planta cujo alimento serve aos pobres em momentos duros, de dificuldades, lega às culturas de Língua portuguesa (em especial, Portugal, Brasil e Moçambique) e, também, ao mundo, um conjunto de obras literárias: romances, contos, crônicas, diários, poesias e peças teatrais, muitas das quais foram traduzidas em várias línguas, em mais de 30 países, dentre elas: o húngaro, o sueco, o romeno, cujo privilégio tiveram de conhecê-lo e divulgá-lo, tornando-o um escritor de interesse e de valor ímpar no âmbito internacional.

Valor esse dignificado por reiteradas vezes ao ser ele laureado por diversos prêmios, nacionais e estrangeiros, de entre os quais destacam-se seis: sendo dois recebidos no ano de 1992, um intitulado Internacional de Ennio Flaiano por Levantado do Chão e o outro, Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores com O Evangelho Segundo Jesus Cristo; em 1995, mais dois, o de Camões e de Consagração SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) por O Ano da Morte de Ricardo Reis; o da Crítica (Associação Portuguesa de Críticos) e, em 1998, recebeu, com grata felicidade, a mais alta condecoração no cenário cultural da literatura, a de Prêmio Nobel, o único conquistado por um autor de Língua portuguesa, consolidando-o como um dos maiores e mais representativos escritores da Literatura contemporânea em Língua portuguesa.

“O operário da escrita” como José Saramago se autodefinia, embora com a saúde muito debilitada, nunca se deixou abater. Escrevia sempre. Além de um livro inédito intitulado Clarabóia, rechaçado pela editora (o único que o escritor teve rejeitado em vida por uma editoria), há por volta de 30 páginas escritas de um outro romance sobre as Guerras e suas motivações, o qual o escritor deixou inconcluso, como há, ainda, uma outra obra Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas!, ao contrário do que se possa pensar não é uma mera referência intertextual direta e de retomada do verso do dramaturgo Gil Vicente, tendo em conta não se tratar das alabardas cortantes da Idade Média, muito menos à obra vicentina, mas do tráfico de armas, segundo o divulgado por José Sucena, Administrador da Fundação José Saramago, pela imprensas brasileira (2) e portuguesa (3).

Considerado por Gabriel Garcia Marques um escritor tardio e por Harold Bloom um dos maiores novelistas vivos em todo o mundo, Saramago subverteu a gramática, criando um estilo próprio e autêntico, anti-convencional, demonstrando em cada obra um mundo particular, sua escrita é irrepetida, por vezes, de díficil leitura, de rebuscamento, de longos parágrafos, sem travessões e pontos finais (ele detestava estes últimos) a exemplo de Levantado do Chão(1947) e História do Cerco de Lisboa (1989). No entanto, instiga o leitor a percorrer caminhos de uma reflexão madura e consciente do papel humano, de sua experiência existencial, sua trajetória e de seu fim, demonstrando uma dialética com o ser e o estar no mundo, numa inefável impossibilidade de dizer-nos tudo, o que implica uma perspectivação integrada de criação estética altamente qualificada.

Para Saramago, a História não era vida real, mas a Literatura. Traduzia a morte com uma racionalidade e simpleza única: é o estar aqui hoje e no amanhã não estar. Num domingo de sol intenso em Lisboa, Portugal, Espanha, Brasil, bem como vários países da comunidade lusófona e, também diversos outros do globo, dão testemunhos de que o “Operário da escrita”, o humilde serralheiro mecânico, que não pôde ir à Universidade, cujo primeiro livro comprou aos 19 anos, com o dinheiro emprestado de um amigo, ascendeu socialmente pelo ofício da escrita literária, conquistou o título de Doutor Honoris causa por várias universidades tradicionais, entre elas as de Coimbra, Estocolmo, Brasília, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e soube como poucos, entre as várias obras que escreveu, sair da Terra do Pecado(1947), Levantado do chão(1980), edificar um Memorial do Convento, seguir em sua Jangada de Pedra(1986), construir uma História sobre o cerco de Lisboa (1989), exilar-se por vontade e convicção em Lanzarote, após a hostilidade sofrida pelo seu Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), para tempos depois, como último desejo, regressar das Ilhas Canárias, numa definitiva e eterna Viagem a Portugal (1981), às nostalgias de sua infância, às suas reminiscências, às suas raízes rumo ao Conto da Ilha desconhecida (1997), ainda que, inexoravelmente, considerado “um homem, um intelectual sem reconhecimento metafísico e um marxista populista e extremista” pelo Vaticano (4).

Assim, dia 20 de junho de 2010, pela hora do meio dia, prossegue em sua eterna caminhada, o nosso homem do barco, cujas mãos hábeis tornar-se-ão cinzas no porão das velas no Alto de São João, em Lisboa, ao som de um violoncelo, tocado por um Vestido vermelho, agraciado por salvas de palmas e de livros (estes de sua autoria) e por inúmeros cravos vermelhos, um símbolo republicano português. Ele não empreende a viagem junto ao seu Pilar, segue solitário em seu destino, como sentiu-se no corredor longo e deserto do aeroporto, após comemorar com os editores de Madrid o Nobel de Literatura, em 1998, deixando-nos o seu imenso legado cultural, literário, político, histórico e humano.

Apesar de Os Apontamentos (1976) positivos e negativos da Crítica e da Igreja, As Opiniões que o DL Teve (1974) e de demais pessoas, José Saramago segue sereno e confiante de que qualquer indivíduo cônscio de sua função social, histórica, política, religiosa e ideológica pode comandar seu próprio leme, ainda que nas Intermitências da Morte (2005), leve, n(A) Bagagem do Viajante (1996), Don Giovani ou O Dissoluto Absolvido(2005), O Homem Duplicado (2002) e su(As) Pequenas Memórias (2006), congregando Todos os nomes (1997) e não ser considerado um Objeto quase(1978), inerte n(O) Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), ou O Ano de 1993 (1975), ou de qualquer outro tempo, diante da misteriosa Caverna(2000): a existência humana, a Maior Flor do Mundo (2001).

Agora, em sua nova rota, é ele o próprio personagem, o homem do leme, o protagonista a contar-nos a sua história e muitas outras Deste Mundo e do Outro (1971), como a d(A) Segunda Vida de São Francisco de Assis(1987) numa verdadeira Poética dos cinco sentidos- O ouvido (1979) em busca de uma Provavelmente alegria(1970).

Oxalá, num(A) Noite (1979), In Nomine Dei (1993), que a sociedade em geral, científica e eclesiástica dos cinco cantos do mundo saiba abstrair Os Poemas possíveis(1966) dos Cadernos de Lanzarote (I,II, III, IV,V, 1994/1996 *…+) uma pergunta crítica, ponderada, indiscriminatória: Que Farei com este Livro?(1980), para que um dia não façamos A Viagem do Elefante (2008) e não nos deparemos com o espelho de Caim(2009). O Bom filho à casa torna, sempre! A partir de agora viverá na memória de todos sob um pedra em um jardim português, como um Manual de Pintura e Caligrafia (1977).

(1) A Cerimônia, inicialmente fechada à população portuguesa, contou com a presença dos familiares de Saramago, além de muitas autoridades políticas, intelectuais e celebridades, destacando-se a do Doutor Carlos Reis, Reitor da Universidade Aberta, as das escritoras Lídia Jorge e Nélida Pinhõn e a dos líderes do Partido Comunista, ao qual Saramago era filiado e nunca o abandonou apesar de publicamente ter sido contrário a alguns atos e acontecimentos dentro do próprio partido, como também ao ocorrido em Cuba (execução de três cubanos, em 2003), o que o levou a vociferar críticas ao sistema castrista de Fidel Castro. José Saramago, embora defendesse ferinamente seus pontos de vista, seja para quem fosse: político ou religioso, tinha sempre disposição a alterá-los se fosse convencido do contrário. Fato este comprovado, mais tarde, após o episódio cubano, ao aclamar Fidel e esboçar sua reação contra o pseudodemocrativismo dos EUA, denominando o sistema norte-americano de “fisionomia fascista”.

(2) Reportagem de Antônio Gonçalves Filho, em 19 de junho de 2010, no jornal” O Estado de São Paulo”.


(3) Noticiário da Tarde da Emissora de Televisão portuguesa RTP1 (em direto), 19de junho de 2010.


(4) Artigo do Osservatore Romano, citado pela La Repubblica ( in Jornal Público, Edição Porto, dia 20 de junho de 2010, p.3)


O Homem:

Por Carlos Pinto Coelho

Os dois Saramagos que conheci

FOI A TARDE em que todos os demónios invadiram o meu Diário de Notícias. Pelos corredores fervilhavam inquietações e boatos. O senhor Raimundo, o mais antigo contínuo da Redacção do jornal, vem dizer-me que sou chamado ao gabinete do director. Meia hora depois tomo conhecimento de que estou despedido (ou “saneado” como então se dizia). Exactamente um ano depois da alegria dos cravos.

Na vetusta “sala verde”, onde Augusto de Castro vivera as suas gloriosas décadas de director do Diário de Notícias, estava agora José Saramago à secretária, rodeado de gente. Era ele o recém-chegado director-adjunto do jornal, designado pelo Partido Comunista para conduzir o Diário de Notícias pelos caminhos da revolução, general com poder para movimentar o que houvesse que movimentar. Mas não foi ele quem me recebeu, antes um jornalista chamado Luís de Barros, militante que o Partido designara director do jornal. De modo que foi Barros quem me transmitiu, de forma atabalhoada, a sentença ditada por Saramago. Não soube do que era acusado, nem ouvi menção a faltas, crimes ou desvarios, ideológicos ou outros. Soube apenas que estava na rua (“saneado”) e ponto final. Tinha entrado, pura e simplesmente, na enxurrada de “reaccionários” e “fascistas” em que milhares de portugueses fomos embrulhados pela turba cega que tinha tomado as rédeas dos órgãos de informação.

Lembro-me de que o meu convicto carrasco me conduziu à porta do seu gabinete, contíguo à “sala verde”, e que, nesse momento, olhei uma última vez para o Supremo Inquisidor. Continuava á secretária, rodeado de gente, sereno, hirto, distante. Dominador.

Anos e anos se passaram. Nas voltas da vida, Saramago é banido do Diário de Notícias e escreve os seus melhores romances, eu vou para a televisão e faço o Acontece na RTP 2. E um dia encontramo-nos, ele escritor prestigiado, eu jornalista conhecido. Foi no restaurante do campo de golfe de Tróia. Um almoço volante onde estavam dezenas de jornalistas e escritores, já não me lembro porquê.

Vejo-o sozinho a uma mesa. Pego no meu café, aproximo-me, cumprimento-o. Sou retribuído com um sorriso e convite para me sentar. Pergunto: “O Saramago acha-me um reaccionário ou um fascista?” Olha-me, perplexo: "Que pergunta, Carlos!” Recordo então a tarde em que todos os demónios invadiram o meu Diário de Notícias. Ele, atento, assombrado, a ouvir. Eu, sereno, a esmiuçar os mil detalhes que carregava na alma. E foi quando, levantando-se pesadamente, com todo o vagar do tempo inteiro, um Saramago formalíssimo, quase solene, mas também subitamente abatido como se alguma rajada de vento mau por ali andasse, murmurou qualquer coisa que não percebi à primeira. Ele repetiu: "Peço-lhe perdão.” E estendeu-me a mão. Avancei um abraço.

No exemplar do Memorial do Convento que anos depois me autografou, guardo o seu abraço “com amizade (muito mais do que as palavras...)”.

In Jornal Público de 23 Jun 10