terça-feira, agosto 19, 2003

Acordar para a realidade custa muito

É verdade meus amigos. Após ter convencido o Pedro Lizzard a tomar o Comprimido vermelho os efeitos secundários de tão abrupto (não, isto não é um link para o blog de JPP) despertar ainda se fazem sentir. Só assim se explica a ausência aqui n' A Matriz de tão ilustre postador.
Mas para colmatar essa ausência aqui vou reproduzir um post antigo publicado no já longínquo dia 26 de janeiro de 2000 (!) após o rescaldo dum emocionante Benfica x Sporting. Esta reedição serve para ilustrar uma das razões pelas quais o trouxe para A Matriz.

"Benfica 1 - Sporting 3 - Íris ou a outra face do espelho

Boa noite.

Este será, certamente, o post mais difícil que já tive oportunidade de escrever.
Porque nunca, como hoje, nem de perto senti tantas e insuperáveis dificuldades em falar o que quer que seja sobre o Sporting que faça algum sentido, ou seja, que me permita ser entendido.
Nunca.

Hoje foi, para mim pessoalmente, dia de reconciliação e composição absoluta.
Hoje, desde que me entendo como observador e, principalmente, como adepto de futebol, sinto algo que nunca, por nunca, tinha tido ainda oportunidade de sentir : composição absoluta entre o meu gosto pelo jogo de futebol e a minha paixão pelo Sporting.
É por isso que fica tão difícil tirar palavras. Não sei exprimir o que é isto, porque nunca o senti antes.
Claro, que já tive muitos bons momentos com o Sporting, grandes jogos, grandes jogadas, grandes jogadores. Mas uma simbiose tão perfeita de tudo como a que sinto hoje, não. Nunca.
E quando digo 'tudo', é tudo, porque o tudo começou como os momentos que guardamos para sempre na memória devem começar. Depois de haver planeado ficar em casa sem sequer ligar o rádio, um telefonema, urgente, em cima da hora, a meio da tarde : "Olha, estou em Lisboa! Vamos lá?....".

Vamos! Fomos.

A reconciliação começou aqui : com a sorte de um telefonema absolutamente inesperado, com uma saída atabalhoada do trabalho a meio da tarde. A partir daquele momento a composição começou, perfeita, e o jogo, o Sporting, passou a ser a linha orientadora de tudo o que se passou até agora.

Nem valerá a pena tentar descrever o ambiente dentro do estádio, não vou por aí.
Simples reconciliação absoluta com o supremo prazer de ver futebol em toda a sua dimensão, e na bancada, no meio de benfiquistas e sportinguistas, em cima do relvado. A suprema conciliação de ver a branca dos olhos dos jogadores sem ser com a intermediação de um vidro, a quilómetros de distância.
Como alguém, certamente mais entendido que eu, disse há pouco tempo, este derby já não é o que era. Pois não é. É muito mais que um derby. É algo que esse alguém nunca terá a mínima hipótese de entender ou pretender alcançar.
Ultrapassa quem não o vive, quem não o sente, quem não o respira, quem não o sofre, como uma doença que começa muito antes do jogo, que contraí todos os músculos, que tolda todas as ideias, que força a circulação de sangue em valores inimagináveis, estou certo disso.
Quando, a propósito do Benfica-Sporting para o campeonato, eu e outros, falámos no "terror" que é enfrentar um derby, muitos não terão compreendido bem do que se tratava, outros terão interpretado mal.
O terror é, afinal, muito simples de explicar : o terror, aquela sensação dolorosa insuportável está na *possibilidade de ser derrotado pelo outro*.
Porque essa é uma possibilidade que é impossível de afastar, porque a derrota é um resultado tão provável como a vitória ou o empate. E é isso, essa certeza matemática, essa inevitabilidade científica que não se consegue evitar, *isso* é que causa o tal 'terror'.
Não é o medo do outro, das capacidades do outro, da categoria dos jogadores ou do futebol do outro. É o horror de *poder perder* com ele.
Hoje foi para mim evidente, e aqui voltamos à reconciliação, algo que também por vezes se encara como incompreensível. É que Sporting e Benfica são absolutamente essenciais à natureza e essência um do outro No sentido de que não faz nenhum sentido a existência de um deles, o sofrer pela sorte de um deles, sem a existência e o sofrimento correspondentes ligados ao outro. O sofrimento que eu ou o sportinguista que me acompanhava ou o que se sentou ao meu lado, sentimos hoje no Estádio da Luz é *a outra face do espelho* do sofrimento que sentiu o benfiquista que também nos acompanhava ou do que se sentou à minha frente. Tão igual e, ainda assim absolutamente oposta, absolutamente antagónica, absolutamente tão ao contrário o que cada um, sportinguista ou benfiquista, queria.
É isso que causa o terror. O terror de saber que o espelho se pode quebrar do nosso lado a qualquer momento. É isso que faz este chamado derby, e que, chamem-lhe derby deste tempo ou não, pouco importa, é isso que o torna este jogo, este confronto, este *face a face*, absolutamente eterno.

Pronto. Afastei-me, divaguei, 'apieguei-me', peço-vos desculpa.
Se bem que me parece que vai piorar.

Volto á reconciliação.
Volto ás minhas dificuldades em exprimir o que quero dizer.
Repito que nunca o senti.
Repare-se, parece-me avisado dizê-lo, que nada desta conversa tem absolutamente nada do que quer que seja contra os benfiquistas ou de picar os benfiquistas por causa da derrota de hoje. E era tão fácil vir agora aqui recordar Calado, Heynkes, Vale Azevedo. Não é nada disso que quero dizer ou fazer. Porque do que se tratou não foi de uma derrota do Benfica. Foi acima de tudo de uma vitória do Sporting.
Uma vitória absolutamente indescritível, porque nunca vi uma vitória tão absolutamente perfeita do Sporting fosse com quem fosse. E aqui faltam-me mesmo as palavras, pelo menos assim para já, de imediato. Faltam-me as palavras que possam exprimir adequadamente o espírito que os jogadores do Sporting hoje transportaram para o campo.
Não estou a falar de técnicas nem tácticas.
Não estou a falar das soberbas actuações de todo e cada um dos jogadores sportinguistas que hoje entraram em campo na Luz (e podia falar com destaques para Schmeichel, Acosta, Delfim, Beto, Mpenza, Vidigal, Rui Jorge....e todos os outros)

Mas não é isso.

É por isso que fica difícil.
Estou a tentar falar de algo que ultrapassa tudo isso, que vai muito para além disso, e que se aproxima, como eu nunca, *NUNCA* vi no Sporting, da simbiose perfeita entre o espírito dos jogadores e de quem está sofrendo por eles. Porque foi um só.
Deixem-me tentar assim : hoje, em cada jogador do Sporting fui, em alma e em espírito, eu que estive a jogar. Aqueles que hoje se equiparam com a mítica verde e branca e subiram ao relvado da Luz, em *espírito* não foram eles ; fui *eu*. Foram todos e cada um dos adeptos Sportinguistas que sofreram *com*, e não 'por', eles.
Esta é que foi a simbiose. Isto é que eu tenho dificuldade em transformar em palavras.
No fim do jogo, os jogadores leoninos dirigiram-se, claro está, ao topo onde estava a maior falange de apoio leonino. E atiraram as camisolas e essas coisas todas, que se vêm em momentos de vitória e que todos já viram. mas houve um momento em que Acosta, já só com a camisa interior, agarrou numa bandeira.
Verde. Só verde. E ergueu-a, e quando a ergueu fomos *todos* nós, adeptos que ali estávamos a alguns metros dele, que a erguemos. Aquela bandeira foi desfraldada e agitada não pelas mãos do Acosta, mas pelos milhares de mãos dos adeptos Leoninos ali presentes e pelos milhões em suas casas. Acosta foi só o nosso representante, o nosso mandatário. As mãos dele eram as minhas. Percebem? Estou a fazer algum sentido? Se calhar não.

...

Eu não sei o que vai acontecer ao Sporting daqui para a frente, a começar em Setúbal, jogo que encaro com grande apreensão, por exemplo.
Eu não faço ideia se o Acosta vai marcar mais algum golo, ou se vamos ganhar mais um jogo que seja. Não sei.
Mas para mim, *hoje* (ontem), 26 de Janeiro de 2000, foi um dia de compleição absoluta, um dia não de mero sonho ou imaginação, mas que existiu mesmo, um dia que ninguém vai poder tirar-me ou desmentir-me, porque eu fui lá, eu vi, eu senti.
Porque a partir de hoje, e pela primeira vez em toda a minha vida, *eu sei* o que é um dia de futebol *perfeito*.
"

Originalmente 'postado' por Pedro Lizzard no Newsgroup pt.rec.desporto.futebol.

Como todos se lembram o Sporting foi campeão nacional neste ano após 18 anos de jejum. A festa que fizémos (eu e o Pedro) foi épica.

Agora espero que a ressaca do comprimido lhe passe depressa e que ele comece a postar coisas mais atuais, de preferência com um contexto semelhante. Era bom sinal.