sábado, outubro 20, 2012

Um adeus sentido a António de Pina

Manuel António Pina
Manuel António Pina

Morreu um homem de bem, excelente cronista.

Hoje é um dia triste para mim que sempre fui seu admirador.

Aqui reproduzo um dos seus textos publicado no JN em 24 de Fevereiro de 2011:

Vampiros e eunucos - Manuel António Pina
"Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda no pinhal do rei", tendo, em tempos afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".
Talvez, mais do que legisladores, artistas como José Afonso sejam, convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade. Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente mais poético.
O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes; se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos "eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os maiorais".
Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo."

Não foram poucas as vezes que o citei aqui n' A Matriz, tantos e tão bons foram os seus escritos, que acompanhava com bastante interesse e admiração, quer no JN quer na Visão.

Agora restam para a posteridade as sábias palavras que deixou escritas, legado inesquecível de um homem inteligente, sensato e discreto.

Património imaterial deste país, que tanto maltrata os homens e as mulheres que verdadeiramente fazem contributos valiosos para a nossa cultura contemporânea.

Ficou muito, mas mesmo muito, mais pobre o país e ficámos todos órfãos da sua sabedoria.

Descansa em paz, companheiro.